A definição radical de Consciência Preta é um processo de introversão e auto centralização das pessoas pretas e não a busca pelo convencimento dos brancos ou uma celebração cultural vazia.
Esqueça os desfiles de "beleza negra" nas escolas e os cartazes apelando à mudança de comportamento dos racistas. Cenas como essas, comuns no 20 de novembro, distorcem as raízes do conceito de Consciência Preta.
Aliás, aqui usamos Consciência Preta e não Consciência Negra, por conta de um posicionamento político, histórico e etimológico. Sem querer invalidar o uso recorrente de Consciência Negra pelo Movimento Negro no Brasil, entendemos que o principal difusor do conceito no cenário internacional, Steve Biko, usava Black Consciousness, que corresponde a Consciência Preta, e não a Consciência Negra.
Consciência Negra tem sido assumida, por muitas pessoas no território chamado Brasil - em especial no contexto escolar - como um momento de celebração da cultura negra, "afro-brasileira" e "brasileira". Na prática, fala-se de comidas, de danças, dos escravos, da retrospectiva de casos de racismo do último ano e - sem esquecer - do apelo para que as pessoas não sejam racistas, uma vez que todos somos iguais.
A Consciência Preta sistematizada por Steve Biko é algo bem diferente. Aliás, embora Biko tenha sido o principal nome atrelado a esse conceito, tratava-se de um movimento. Para entender, tentaremos fazer uma entrada na história da África do Sul.
Apartheid como - tentativa de - interrupção da história africana
Ao expandir nossos ouvidos históricos, conseguimos audibilidade suficiente para perceber que a história dos povos africanos começa há mais de 250 mil anos. Foi em África - Alkebulan ou outros nomes antigos seriam mais adequados - que a humanidade surgiu e estabeleceu as bases para tudo que hoje existe a partir do desenvolvimento hominídeo.
O território onde hoje está o país conhecido como África do Sul já abrigou elaborações artísticas, científicas e tecnológicas de cerca de 100 mil anos atrás, para citarmos apenas o exemplo do kit artístico achado na Caverna Blombos junto a joias e a um bloco com cisões intencionalmente simbólicas.
Há cerca de mil anos uma sofisticada civilização se ergueu próxima ao rio Limpopo. Era Mapungubwe, reino com conexões comerciais globais com Kemet, Índia e China. Eram dominadores do ouro, tinham uma importante organização social, jurídica e religiosa, além de pujança econômica. Mapungubwe se desenvolveu entre o século 10 e o século 14 de nossa era.
Do alto de seu umbiguismo, entretanto, os europeus, que começaram a empreitada colonial apenas no século 16, se afirmaram os primeiros habitantes da parte sul da África. A ousadia foi tamanha que criaram a teoria da "terra vazia". Tratava-se de um mito que assumia a entrada dos povos africanos e dos europeus naquele território como tendo ocorrido ao mesmo tempo. Assim, os brancos teriam o mesmo direito que os pretos originais sobre a região. Nota-se aí que a distorção histórica operada por eles não é coisa de hoje.
Primeiro foram os holandeses e, tempos depois os ingleses se aliaram - e tem gente achando que a união de ascendência europeia é atual - na intensa colonização de fins econômicos, especialmente pela descoberta das gigantes reservas de ouro e diamante. Ao passo que o poder bélico fazia uma entrada violenta, o poder simbólico, cultural e religioso talvez tenha tido investimentos ainda maiores para a destruição total do estilo de vida do africano, tornando-o desterrado de si mesmo.
Shaka Zulu, grande líder e organizador do Povo Zulu, derrotou exércitos ingleses durante o século 19 e, ainda hoje, muitas vezes é retratado pela historiografia europeia como cruel e sanguinário. Hoje quem se organiza e busca autonomia verdadeira continua sendo representado assim.
A tentativa europeia de destruição do povo africano no território sul do continente ganhou uma de suas versões mais sofisticadas, organizadas e explicitamente cruéis com o regime do Apartheid. Instalado em 1948 por um pastor protestante que ascendeu ao poder, o Apartheid já estava sendo precedido há bastante tempo pela arquitetura manipuladora branca.
Eles dominaram a terra, estabeleceram as bases da militarização da vida pública, controlaram o uso dos recursos naturais, expulsaram as pessoas de seus territórios, instituíram seus processos educacionais formais e informais, enraizaram sua religião. Cerca de 30 anos antes da regulamentação do Apartheid, em 1913, os pretos começaram a ser intensivamente expulsos de suas terras, passaram a ter direito apenas a 7,5% do território que antes era inteiramente deles.
Então, o Apartheid foi de fato um alto refinamento de toda a segregação que já estava em curso com vistas a destruir completamente a vida africana e instalar naquela terra um comando destrutivo. Os antepassados dos executores do Apartheid pavimentaram o caminho.
Luta Anti-Apartheid e Movimento da Consciência Preta
Os filhos da terra sempre buscaram revolução. Porém, é ingenuidade pensar que o enfrentamento ao Apartheid tivesse sempre contornos de libertação verdadeira e independência. É importante lembrar que houve - e há - uma guerra cultural, espiritual e social para a total destruição dos referenciais e valores africanos, muito distintos daqueles estampados pelos brancos. Logo, por mais sincera que a luta contra o regime de segregação fosse, sempre corria-se o risco de cair em armadilhas postas pela visão de mundo na qual muitos africanos vinham sendo violentamente educados desde o século 16.
Ao mesmo tempo, a partir da década de 1950 era possível sentir um aroma comum entre diversos territórios africanos, de norte a sul. Era o cheiro de fumaça, proveniente das chamas de libertação que se acendiam em diversos países colonizados pela Europa. Namíbia, Moçambique, Zimbábue, Quênia, Tanzânia, Gana, Angola, Senegal - para citar apenas algumas referências - eram países com intensa movimentação na luta pela independência. Como já era costume dos povos africanos há muitos milênios, as trocas e comunicações nesse momento eram grandes. É o caso do forte slogan em Moçambique - vizinho sul-africano falante de português - A LUTA CONTINUA. A frase foi popular na África do Sul e faz parte da memória viva, como pode ser visto no Memorial Constitution Hill (Joanesburgo).
Na África do Sul, o povo original, agora sob o nome de pretos, buscava meios de livrar-se da constante violência. O Apartheid controlava todos os aspectos da vida social: onde ir, como se transportar, onde se sentar, em quais bairros ir, qual língua estudar...
Há relatos de que entre as décadas de 1960 e 1970 a luta antissegregacionista passava por uma fase de esvaziamento de sentido e cooptação por lideranças subservientes à supremacia branca, enquanto nomes importantes haviam sido presos ou exilados. É nesse período que uma juventude insatisfeita com o cenário se levanta para construir outros padrões de enfrentamento.
Surge, em meados da década de 1960, o Movimento da Consciência Preta. Tratava-se de jovens impulsionados pelo desejo de transformação e libertação radical das garras branco-europeias. O programa colonizador chamado de "Educação Bantu" estava em plena instalação nas escolas que atendiam crianças e jovens pretos. O pacote carregava uma desfiguração total da história, da cultura, da língua e dos saberes africanos em nome da obrigatoriedade do ensino em língua africâner - que era coisa de branco. Muitos professores burlavam como podiam o sistema e, assim, incendiavam ainda mais a revolta na juventude sul-africana.
Pela prática revolucionária e autocentrada, aquela movimentação estava criando uma consciência política, espiritual, cultural, econômica e social própria, em busca de autenticidade e desvinculação do mundo branco. Era a CONSCIÊNCIA PRETA.
De maneira explícita, os pretos da terra davam ênfase a seus próprios valores ao mesmo tempo em que percebiam que a dominação branca ia para além da camada superficial do trabalho e da dominação econômica e controlava também suas consciências. O povo africano estava sendo tornado uma mera projeção dependente da identidade branca e europeia. É nesse movimento coletivo que se destaca o jovem Steve Biko.
Steve Biko, ou o homem que não aceitava o medo como nome
Aos 16 anos, Bantu Stephen Biko, que havia nascido dois anos depois da instituição legal do Apartheid, foi expulso de uma escola por organizar sua revolta junto com colegas. Em idade universitária, adentrou na faculdade de medicina na Universidade de Natal. Lá, junto a outros jovens, fundou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos (SASO - South African Student Organisation).
A organização surgia no ânimo do Movimento da Consciência Preta, e demonstrava insatisfação com os rumos tomados por outras organizações de luta contra o Apartheid, uma vez que muitas contentavam-se com a integração. Uma submissão ao mundo dominado pelos brancos vestida com roupas bonitas e cheias de docilidade.
Biko foi um importante pilar por sistematizar e difundir o pensamento que embasava uma libertação que fosse capaz de garantir a verdadeira humanidade ao povo preto oprimido. A liberdade de ser africano era, para ele, algo inegociável. Suas palavras eram incendiárias, assim como suas ações. Onde quer que o espírito do jovem alcançasse, perto ou longe, plantava-se uma semente de recentralização da consciência, voltada para o interior da identidade africana do povo preto.
Por ser porta-voz de tais ideias, Biko era caçado pelos brancos no governo. Era também criticado pelos brancos ditos progressistas, uma vez que ele entendia que a libertação verdadeira não viria caso houvessem alianças e associações com eles. Era, portanto, um exímio intérprete da história que ocorria ao seu redor.
O pensamento e a atuação do sul-africano eram amplos e multifocais, envolvendo aspectos políticos, culturais, espirituais e também de saúde. Aliás, vale uma aproximação do trabalho que ele e sua esposa Mamphela Ramphele desenvolveram junto ao povo no tocante à promoção da saúde (confira uma boa exposição da vida de Mamphela no livro "Às irmãs: mulheres africanas na revolução preta mundial" lançado pela Editora Filhos da África).
Steve Biko afirmava com firmeza que esperar justiça por parte dos brancos era uma ingenuidade extrema. Pelo contrário, deve-se ter em mente que, em um contexto de opressão racial montada pelos brancos, não se deve subestimar a existência do medo branco em relação ao povo preto. Por outro lado, é necessário arrancar, do vocabulário africano, o conceito de medo.
"Escrevo o que eu quero"
Um dos valores comuns nas tradições africanas de todas as partes do continente é o poder, a sacralidade, a energia da palavra. Portanto, o silenciamento é uma profunda agressão à existência africana, assim como não se ter liberdade para falar o que se deseja. Prender a palavra do sujeito africano é assassinar parte dele.
Como não admitia viver sem um propósito que valesse à pena, Steve Biko ficou conhecido por dizer que escrevia o que queria. Não era subserviente ao que desejavam que ele dissesse. Assim, "Escrevo o que eu quero" foi o título dado ao livro que reúne diversas de suas contribuições ao povo organizadas originalmente por meio da palavra falada e escrita.
Trazemos a seguir, na íntegra, dois textos digitalizados de uma edição do livro citado feita pela Editora Kisimbi. Acesse uma outra edição do livro na Biblioteca AMANDLA. Discordamos, na tradução abaixo, do uso de "negro" no lugar de "preto", pelo motivo já exposto anteriormente. Mas, isso não impede a compreensão.
O primeiro texto apresenta um escurecido debate sobre o que é Consciência Preta, enquanto o segundo dá, para nossos ouvidos, uma substância cultural inegociável para se pensar a existência africana em qualquer lugar do mundo.
A questão de Biko
Certamente, são muitos os pontos incluídos no pensamento de Steve Biko, incluindo abordagens que podem nos servir de lição e agência em diferentes campos, como economia, educação, política, cultura.
Uma grande questão que aparece como eixo centralizador do seu pensamento é a necessidade de estabelecer parâmetros concretos para que o povo africano tenha, coletivamente, a garantia de viver uma verdadeira humanidade, a seu próprio modo, e não a partir dos referenciais brancos. A rejeição branca quanto ao seu pensamento foi tão intensa que ele, aos 30 anos, foi torturado e morto, depois de passar por diferentes perseguições.
A supremacia branca nunca negociou seu acesso exclusivo ao desfrute da humanidade. É por isso que, mesmo após a "reconciliação" com o fim do Apartheid em 1994, poucas foram as mudanças concretas nas desigualdades entre pretos e brancos na África do Sul. As políticas foram esvaziadas de elementos garantidores de humanidade, de uma humanidade autenticamente africana. No vídeo abaixo, há uma análise interessante quanto à questão da Consciência Preta para os atuais sul-africanos. É possível ativar as legendas e a tradução delas.
Que consciência temos?
Do lado de cá do Atlântico, no Brasil, a supremacia branca - que tem um projeto global de destruição de todos nós, africanos - se organizou de uma maneira diferente quanto à metodologia de opressão.
Enquanto na África do Sul o domínio se estabeleceu pela segregação explícita, por aqui desenvolveu-se uma tecnologia de assimilação. Nos pretos, implantou-se o sonho e a viabilidade de tornarem-se brancos, tendo como veículo a mestiçagem e a sutil "aceitação" nos espaços brancos, bem como a fraternidade entre todos e até mesmo a criação de uma classe branca empobrecida para causar confusão. No fundo o projeto é o mesmo.
Biko usava o termo "preto", que pode muito bem ser debatido hoje rumo à assunção de uma Consciência Africana ou Africano-Centrada, que parecem opções muito mais coerentes com nossa história e auto nomeação, já que a negrificação ou pretificação de nosso povo foi operada pelos europeus. Mas, talvez, o que mais importe nesse sentido, seja a essência dessa Consciência. Qual é a Consciência que temos? Sem dúvidas, Biko dá respostas a questões nas quais muitas vezes continuamos patinando hoje, como:
a urgência de orgulho e consciência histórica,
a ilusão da aliança com brancos na busca pela libertação,
a defesa de valores culturais africanos como espiritualidade e comunitarismo,
a organização pela autonomia econômica grupal,
a preocupação com a imagem africana oferecida às crianças,
o fortalecimento da autoestima e da estética com teor político e histórico.
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